domingo, 22 de julho de 2007

Uso um deformante para a voz.
Em mim funciona um forte encanto a tontos.
Sou capaz de inventar uma tarde a partir de uma garça.
Sou capaz de inventar um lagarto a partir deuma pedra.
Tenho um senso apurado de irresponsabilidades.
Não sei de tudo quase sempre quanto nunca.
Experimento o gozo de criar.
Experimento o gozo de Deus.
Faço vaginação com palavras até meu retratoaparecer.
Apareço de costas.
Preciso de atingir a escuridão com clareza.
Tenho de laspear verbo por verbo até alcançaro meu aspro.
Palavras têm que adoecer de mim para que setornem mais saudáveis.
Vou sendo incorporado pelas formas pelos cheiros pelos sons pelas cores.
Deambulo aos esgarços.
Vou deixando pedaços de mim no cisco.
O cisco tem agora para mim a importânciade Catedral.



MANOEL DE BARROS
em Retrato do Artista Quando Coisa,
Editora Record, 1998.